Material
obtido junto ao Observatório da Imprensa
IMPRENSA EM QUESTãO > ‘PENNY
PRESS’
Jornalismo
de centavos, sensacionalismo e cidadania
Por Luiz Martins da Silva
Por Luiz Martins da Silva e Fernando Oliveira Paulino em 29/04/2014 na
edição 796
Comunicação apresentada no Grupo de Trabalho
Jornalismo e Cidadania da 4ª Conferência ICA América Latina, sob o tema
“Diálogos entre Tradição e Contemporaneidade nos Estudos Latino-Americanos e
Internacionais de Comunicação, Universidade de Brasília, 26 a 28 de março de
2014; título original “Repensando o penny press: jornalismo de centavos,
sensacionalismo e cidadania”
Este trabalho consiste em tentativa de compreender
o florescimento de tabloides brasileiros como uma nova, grande e sustentável
onda do que atualmente se tem denominado de “jornalismo popular”, mas que
seria, de fato, o reaparecimento – com algumas variações em torno da fórmula
original –, do jornalismo sensacionalista que remonta aos anos de 1830 e que
foi chamado pelos estudiosos ora como penny press ora como yellow
press e, no Brasil, de imprensa marrom.
A análise está dividida em duas
partes: a primeira, detendo-se na evolução dessa modalidade de “popularização”
dos acontecimentos midiáticos. A segunda, um exercício de projeção
teórico-deontológica: a penny press de hoje pode oferecer aos seus
leitores mais do que os ingredientes tradicionais – crimes, fofocas e esportes
–, pois entre as inovações já se encontra uma significativa dose de matérias de
serviço. Porém, a principal indagação é: da mesma forma como esses jornais
retratam a violência e se servem dela como um valor mercadológico, poderiam
igualmente prestar um serviço à sociedade também difundindo valores de cultura
de paz? Nesse caso, conclui-se que estariam, por força de um novo valor
agregado, ultrapassando o seu papel de ser tão somente uma nova versão da
rebatida fórmula do jornalismo de centavos.
O fenômeno na sua origem
Iremos considerar para o início desta reflexão os
conceitos de penny press, yellow press, yellow journalism e imprensa
marrom para, em seguida, fazermos uma aferição de como um fenômeno
histórico está presente no atual mercado de notícias e, por fim, verificarmos –
em termos de uma projeção teórico-deontológica –, as possibilidades de
utilização do seu potencial para fins de difusão de valores, especialmente os
de cultura de paz.
O que estamos designando de “jornalismo de centavos”
corresponderia a uma tradução livre, para os dias de hoje, do que um dia foi a penny
press, ou seja, uma modalidade de jornalismo que surgiu nos Estados Unidos
na década de 1830 para atender a demanda, o gosto e o poder aquisitivo da
classe trabalhadora (working class) e imigrantes, por iniciativa de
empresários que viam nessa prática um achado mercadológico e auto-sustentável,
isto é, de forma a não depender, financeira e editorialmente – como o fazia a
“grande imprensa” da época –, de partidos políticos (party press).
Penny é a menor divisão da moeda
inglesa, a libra esterlina. A expressão que se criaria no imaginário
anglo-saxão, penny press, corresponderia a uma imprensa de centavo, tão
acessível e tão popular, a ponto de ao custo de dois centavos ser possível
remeter-se um jornal para a leitura de alguém. Não se tratava, porém, de uma
imprensa de assinatura, mas de um filão cuja fórmula consistia exatamente em
difundir notícias curtas e de interesse geral, em contraste com as notícias de
caráter ideológico e analíticas, típicas da imprensa criada para difundir
ideais político-partidários. A penny press surgia para a venda imediata,
direta e prática ao consumidor, por meio dos jornaleiros, cujo ícone, no
sentido iconográfico mesmo, veio a ser o de uma criança com a boca escancarada,
apregoando: “Extra, extra!” [Jornaleiros, ou seja, ‘pagos à jorna’
(jornada); ardina (étimo português)].
A penny press é um fenômeno bem datado,
referenciado em dicionários de comunicação e constantemente citado pelos que têm
pesquisado as teorias do jornalismo, como o professor Jorge Pedro Sousa [Construindo
uma teoria do jornalismo. Em: www.bocc.ubi.pt, p. 9], autor de
várias obras nesse campo. E é ele que vai fazer sobre essa modalidade de
imprensa o seguinte registro:
A imprensa noticiosa tem raízes
na primeira geração da imprensa popular que desponta nos Estados Unidos nos
anos vinte e trinta do século XIX e na imprensa de negócios que floresce a
partir do século XVIII. Essa primeira vaga de jornalismo predominantemente
noticioso (penny press) vai-se impor ao jornalismo predominantemente
opinativo (party press) até ao final do século XIX, motivada, entre
outros factores, pelo aumento da informação circulante devido à generalização do
telégrafo e à melhoria dos transportes e das vias de comunicação. Em Portugal,
a fundação do Diário de Notícias, no fim de 1864, assinala precisamente
essa viragem noticiosa do jornalismo.
Penny press:literalmente, imprensa de
centavos [TRAQUINA, N. Teorias do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2005, p.
50, “O novo conceito de produção jornalística pode ser exemplificado com o New
York Sun, primeiro jornal de massa que surge em 1833, o New York Herald,
criado em 1835, e o La Presse, lançado em Paris em 1836]. No plural,
porque, enquanto os jornais tradicionais eram vendidos por seis centavos, os
‘novos’ jornais eram vendidos pela metade, ou seja, três centavos, nos EUA.
A
designação penny press foi, portanto, pejorativa, preconceituosa,
conotação para ‘imprensa barata’, jornalismo sem qualidade. Teria, já àquela
altura, despontado a distinção entre ‘cultura de massa’ e ‘cultura de elite’,
mais tarde presente nas análises dos pesquisadores que vieram mapear as
características de um fenômeno mais amplo que veio a ser designado por
indústria cultural, denominação preferida pelos pensadores da chamada “Escola
de Frankfurt” em relação à expressão “cultura de massa”, por entenderem que a
massa – amorfa e desprovida de subjetividade própria –, não era capaz de produzir
cultura. E a própria cultura que lhe era atribuída era, na verdade, uma
produção estruturada por um sistema dominante e capaz de impor um ethos
já pronto para ser consumido de forma acrítica, algo totalmente inverso à ideia
de uma sociedade auto-reflexiva e, consequentemente, autônoma e esclarecida.
De forma mais ampla, a reprodutibilidade técnica
que assiste em quantidade e velocidade ao novo paradigma de produção,
circulação e consumo de jornais viria a ser designada de yellow press,
em analogia às ‘páginas amarelas’ dos anúncios comerciais em catálogos e
listas, gênese das atuais listas telefônicas, cujo miolo ainda é impresso em
papel barato, aliás, chamado de papel-jornal.
O barateamento da produção e o
próprio barateamento qualitativo dos conteúdos viriam, no entanto, ser
fundamentais para o estabelecimento de uma ‘economia política’ capaz de
assegurar a grande escala sem a qual não haveria sustentabilidade para um dos
princípios mais elevados da democracia que é a liberdade de imprensa, conceito
polêmico, pois ao mesmo tempo de dupla interpretação: liberdade de imprimir (print)
e liberdade de publicar (press). O princípio da liberdade (freedom)
de imprensa foi colocado por Thomas Jefferson (1743-1826) acima do valor dos
próprios governos e, por si, constitutivo da democracia: “Se eu tivesse de
decidir entre um governo sem imprensa e uma imprensa sem governo, eu não
hesitaria um momento em escolher a segunda alternativa” (1787).
O fenômeno em sua expansão
A concorrência entre os jornais e, com ela, as
estratégias para a conquista de fatias cada vez mais expressivas de leitores,
têm levado a imprensa de massa desde os seus primórdios até os dias presentes a
fazer uso intensivo da principal característica do sensacionalismo, que é o
exagero. Como se a preferência por fatos dramáticos já não fosse por si uma
tendência agonística do jornalismo, exponenciar os acontecimentos e as ações no
que eles possam oferecer de dantesco e de grotesco tem sido uma prática
constante, por vezes temperada com pitadas de erotismo e de outros apelos
sensoriais, emotivos e psicológicos.
Haveria (RABAÇA e BARBOSA: 424) duas
categorias de sensacionalismo: o positivo e o negativo. O primeiro, referente
ao exagero no tratamento jornalístico, por exemplo, com as “manchetes garrafais”;
e o segundo, contendo “apelos e emoções destrutivos, geralmente de cunho
sadomasoquista” [Cf. RABAÇA, Carlos Alberto e BARBOSA, Gustavo. Dicionário
de Comunicação. Rio de Janeiro, Codecri, 1978, p. 424, verbete
“Sensacionalismo”, por sua vez, remissivo a “Imprensa marrom” (p. 226), verbete
vazio, pois remete a “Imprensa amarela”], procedimento característico do
que propriamente se denominou, no Brasil, de imprensa marrom, por sua
vez sinônimo de imprensa amarela (segue, na íntegra, o verbete correspondente”
[Idem, p. 256]:
IMPRENSA AMARELA (jn):
Imprensa sensacionalista. Expressão surgida nos Estados Unidos, em fins do
século 19, no auge da competição entre o jornal New York World (de
Pulitzer) e o Morning Journal (comprado em 1895 por Randolph Hearst),
pela conquista dos leitores novaiorquinos. Surgiram nessa fase alguns dos
elementos que lançaram as bases do jornalismo moderno: manchetes
garrafais, artigos sensacionalistas, seções esportivas, numerosas
ilustrações etc. O jornal World, concentrando esforços sobre o suplemento
dominical, passou a estampar desenhos de Outcault (Yellow Kid) impressos
em cor amarela, para atrair atenção do público. Os primórdios das Histórias
em Quadrinhos estão, assim, vinculados também às origens do jornalismo
sensacionalista. A competição entre esses dois jornais refletiu-se em inúmeros
outros órgãos de imprensa, que levaram o sensacionalismo às últimas
conseqüências, apelando para o escândalo, a intriga política, o achaque, a
chantagem etc. No Brasil, diz-se mais freqüentemente imprensa marrom.
Segundo Alberto Dines, esta expressão “foi cunhada pelo então chefe de
reportagem do Diário da Noite, Francisco Calazans Fernandes, que sugeriu usar
uma cor mais forte – o marrom – para designar ‘imprensa amarela’ (yellow
press), expressão comum no jargão jornalístico ocidental. O DN
passou a adotá-la, sendo logo seguido pelos demais jornais e jornalistas que
deram cobertura à campanha e permitiram o seu êxito”.
A receita básica ainda está em pleno uso, se bem
que sobrecarregada ainda mais em alguns dos seus elementos, como, por exemplo,
as cores. Com o advento da impressão em off set e, mais recentemente,
com o contributo de máquinas velocíssimas e digitais, muitas delas dispensando
o antigo e demorado processo de revelação química de fotolitos e a retocagem
dos mesmos, o colorido das páginas representa um atrativo a mais. A cor
amarela, no entanto, ainda exerce uma predominância, ao lado do verde do
alaranjado, por coincidência, as cores prediletas no planejamento de uma série
de produtos industrializados, entre eles, refrigerantes. [O tabloide Aqui
DF, de Brasília (R$ 0,50 – 28 páginas), apresenta com frequência em sua
primeira página um terço da mesma em fundo amarelo, sobre o qual recai a
principal manchete, geralmente dedicada a um crime. O amarelo é também a cor
predominante na capa do Jornal na Hora H!(R$ 0,25)]
Em termos de conteúdos, as variações são poucas.
Conforme ressalta Nelson Traquina (2005, p. 50) o surgimento da penny press
implicou não só o aumento da circulação dos jornais, mas também a
homogeneização de alguns fatores: a) conteúdos: notícias sobre fatos locais do
cotidiano, processos de justiça, crimes, execuções, catástrofes e eventos
extraordinários; b) rebaixamento de preços; c) público amplo e generalizado, ou
seja, massivo; d) linguagem simples e acessível a pessoas de instrução escolar
fundamental. Exemplifica como parâmetros desse então novo conceito de produção
jornalística, o New York Sun, primeiro jornal de massa que surge em
1833, o New York Herald, criado em 1835, e o La Presse, lançado
em Paris em 1836.
Há autores de várias épocas, como Frank Fraser Bond
(1962) e Luiz Gonzaga Motta (2006), que enxergam na forma como o jornalismo
sensacionalista narra os fatos um parentesco com as tramas teleológicas da
literatura popular e do “fantástico” (na acepção do “conto maravilhoso”). [O
“conto maravilhoso” é a categoria criada pelos formalistas russos para designar
o trânsito dos personagens pelos mundos natural e sobrenatural, bem como pelas
metaformas que assumem na prática de suas ações e respectivas consequências,
boas ou más. Tal como é próprio dos atores das narrativas fantásticas, recebem
dos seus criadores um destino conforme as suas ações, os jornalistas, no trato
dos seus atores, também tenderiam a ser ou não justiceiros dos personagens
envolvidos nas tramas ‘reais’. Em Brasília há um apresentador de um telejornal
policialesco, que vibra e se exalta com o insucesso dos criminosos, fazendo uso
da sentença “Como eu gosto de bandido burro”. Muito comum é também o uso de
manchetes punitivas nas notícias de crimes publicadas pelos tabloides: “Mala
levou bala”; ou, “Mala se deu mal”.]
Bond se refere a uma certa “psicologia
do público leitor” a ser atendida em seus “impulsos reprimidos ou frustrados”
por relatos compensadores. O público estaria dividido em três categorias
básicas: os intelectuais (grupo pequeno que tende para a crítica), os práticos
(grupo envolvido com negócios e que não tem interesse em crítica ou arte) e os
não-intelectuais (o maior de todos os grupos), que “lêem as revistas mais
baratas, apreciam os espetáculos baratos e emocionam-se vivamente com os filmes
de perseguição e aventuras”. Comparando os papeis do escritor e do jornalista
perante os anseios dos públicos, Bond afirma: “Embora o novelista e o escritor
tenham explorado esses princípios [o impulso de ação, o impulso de sexual e o
impulso para o mundo do sonho], mais extensamente do que o jornalista, este
nunca deve esquecer que seu público é o mesmo. Sua incumbência, como a do
novelista, é interessar o leitor” [Opus cit., p. 80].
“Como pode o escritor satisfazer as necessidades
desses grupos que, unidos, compõem a população nacional de leitores de
jornais?”, indaga Fraser Bond, para em seguida, ele próprio comparecer com esta
resposta: “Pode fazê-lo analisando seus gostos e necessidades e lembrando-se
deles quando se aventura mesmo pelo mais simples noticiário”.
Motta, por sua vez, tem analisado ao longo de seus
vários livros sobre teoria do jornalismo a presença do mito nas narrativas de
fatos insólitos, cujo enredo se passa numa fronteira de encantamento em que o
real parece inacreditável e o inverossímil se demonstra empírico. Essa
comutação entre o real que parece fictício e a ficção com foros de realidade
também encontra explicação nas reflexões de Adriano Duarte Rodrigues, no seu
texto sobre “O acontecimento” [Trata-se do capítulo “O acontecimento”, texto
de abertura do livro TRAQUINA, N. (Org.) Jornalismo: Questões, Teorias e
“Estórias”. Lisboa: Vega, 1993].
Ao propor uma equação segundo a qual os
acontecimentos quanto mais improváveis mais midiáticos, Rodrigues conclui que a
mídia cumpre uma função remitificadora do cotidiano. Estudioso dos faits
divers [Faits divers: fatos diversos, em francês; features, em
inglês. Expressão para histórias “leves” ou que não se enquadram,
ordinariamente, em editorias específicas: política, economia…], Motta tem
analisado uma boa quantidade de matérias jornalísticas em que a singularidade
fica por conta do que a razão consideraria impossível de acontecer, mas que se
apresenta no cotidiano das manchetes, como na seguinte: “Presente de Natal:
filha ‘enterrada’ volta ao lar” [Opus cit., p. 114].
O estranho-insólito é o eixo a
partir do qual o resto da história é narrado. Ele é colocado pelo jornalista
logo na primeira frase do lide da matéria (um presente de Natal de arrepiar os
cabelos), estimulando desde o início o efeito do espanto em relação ao
episódio. O relato pode ser identificado com o que T. Todorov chama de
fantástico-estranho […].
A morbidez foi e permanece como um dos cacoetes
mais presentes no processo de seleção e hierarquização (newsmaking) dos
fatos e histórias que compõem a pauta (agenda) dos conteúdos da penny
press. E um dos lugares-comuns na edição desse tipo de ‘notícia’ é a
montagem de uma charada que convida à leitura, mediante a curiosidade
instaurada no título e subtítulo e a decifração do enigma à medida que o leitor
percorre a estrutura da narrativa, sob a forma da pirâmide invertida [Na
verdade, a moça, supostamente morta, estava desaparecida por seis meses,
sofrera um acidente, esteve em coma e, um dia, para surpresa natalina,
apareceu, de táxi, para espanto de sua mãe].
O fenômeno, hoje, no Brasil
Transportando no tempo esse fenômeno para a
Brasília das décadas de 2000 a 2010, pode-se dizer que a fórmula básica se
mantém, mas com alguns acréscimos. No ‘país do futebol’, uma visível ênfase nas
matérias sobre jogos, campeonatos e vida de jogadores [No Aqui DF,
seis das 28 páginas são dedicadas exclusivamente a esportes (futebol, em maior
parte)]. No país das telenovelas, páginas de serviço com informações sobre
a grade de programação e, evidentemente, muitas notas sobre a vida das
celebridades do mundo da TV: um olho nas tramas ficcionais e outro nos detalhes
da vida particular dos atores e atrizes.
Um ingrediente, no entanto, sobressaiu
nesse contexto de cultura tropical, não-puritana e permeada pela nudez típica
das passarelas de carnaval [Uma nova tatuagem da pop-staré pretexto
para uma foto sensual da mesma, mesmo que a tatuagem tenha sido no pulso (Aqui
DF, p. 16, metade da página, em 18/02/13)]. Alguns desses tabloides
apresentam invariavelmente uma chamada de primeira página com uma “modelo” nua
ou seminua, remetendo para um “ensaio” fotográfico nas páginas interiores e
sempre que possível apontando um detalhe picante sobre a intimidade da
retratada, por exemplo, a revelação de que ela usa um piercing íntimo.
[No
Distrito Federal, onde situamos a nossa amostra empírica, o Jornal na Hora
H!(R$ 0,25 – 24 páginas) é o veículo que oferece como atrativo diário uma
stripper. E há até uma chamada-lugar-comum. Com uma ou outra alteração no
texto, ela é aquele tipo de mulher que de “santinha” só tem a cara ou que de
“anjinho” só tem o rosto. Tais apelos terminam com imperativos do tipo “Confira
a gata” (na página 17).] É claro que esse tipo de permissividade erótica
não é admissível na sociedade norte-americana. Com todo o seu liberalismo, um
nu em primeira página só com a edição dentro de um plástico.
No Brasil, o tipo-ideal de penny press pode
ser expresso pelo diário Super Notícia, de Belo Horizonte (R$ 0,25), o
jornal de maior tiragem no país em 2010 e 2011. Uma simples visita ao portal do
Super Notícia [Disponível em http://www.otempo.com.br/super-noticia/.
Acesso em: 12 jan. 2014] permitirá ao leitor abrir uma enorme variedade de links
que compõem o cardápio das retrancas e respectivos conteúdos. A principal
manchete é dedicada predominantemente ao principal crime do dia. Crimes
predominam nos links, especialmente os da editoria de Cidades.
É importante verificar que o jornalismo de centavos
hoje presente nas capitais brasileiras ultrapassou em muito – tanto em
variedade de conteúdos quanto em qualidade gráfica –, os jornais que outrora se
enquadravam no gênero “jornalismo policial”. Embora os fatos da “crônica
policial” continuem sendo a peça de resistência do “jornalismo popular”, os
tabloides atuais proporcionam aos seus leitores (e internautas) um leque muito
amplo de “variedades”, incluindo colunas (sete no caso do Super Notícia),
palavras cruzadas, jogo de sete erros, horóscopo, seções dedicadas a novelas e
matérias de serviço (dinheiro, empregos, concursos). O Super Notícia tem
um link para notas de “Utilidade pública”.
É preciso ressaltar a existência de numerosos
jornais gratuitos, mas que, a despeito da sua gratuidade e de serem tabloides,
não se enquadram no gênero “jornalismo popular”, como é o caso do principal
tabloide gratuito de Brasília, o Jornal da Comunidade (semanário do
Grupo Comunidade, 130 mil exemplares) e dos diários Metro (16 páginas) e
Destak (16 páginas), o primeiro (JC) marcado por matérias mais
amplas e analíticas (política, economia, saúde, comportamento, mercado
imobiliário) e por um significativo número de páginas dedicadas à alta
sociedade da Capital brasileira. Com diversificada oferta de notícias curtas, o
Destak também não traz conteúdos típicos do chamado “jornalismo popular”,
em suas editorias de: Brasília, Brasil, Mundo, Seu
Valor (economia), Vitrine Destak (mercado publicitário), Esportes,
Diversão & Arte, Passatempo (cruzadas, horóscopo, frases,
sudoku etc) e Seu Destak (notas de serviço).
Já o tabloide gratuito Coletivo (16 páginas,
do Grupo Comunidade), possivelmente por ter como público focal passageiros do
metrô e dos transportes coletivos, concorre claramente com o Jornal Na hora
H! e com o Aqui DF (do grupo Diários Associados), mas sem a ênfase
apelativas daqueles dois com relação a conteúdos policiais e eróticos. Enquanto
o jornal Metro orienta a sua diferença para matérias informativas e de
serviço, o Coletivo também difere dos jornais de R$ 0,25 e 0,50, mas sem
deixar de ser “popular” na embalagem da leitura rápida e fácil dos conteúdos e
mesmo sem ser tão apelativo quanto aos conteúdos policiais e eróticos não deixa
de explorar as ‘fofocas’ do show business (retranca “Variedades”),
coisas do tipo: “Melancia assume namoro com pagodeiro. A informação foi confirmada
pela assessoria da dançarina”.
Brasília, cidade marcada pela rotina administrativa
e consequente presença de grande número de usuários de repartições públicas,
viu incorporar-se ao seu cotidiano a oferta de publicações gratuitas, que
tornam menos aborrecida a espera pelo atendimento em órgãos como: Departamento
de Trânsito, Procon, Receita Federal e outros. Evidentemente, que jornais com
mulheres nuas e manchetes escabrosas não combinam com o decoro desses
ambientes, mais formais e mais protocolares [Fotos de ‘modelos’ exibindo
pronunciadas nádegas são rotineiras em boa parte dos tabloides de baixo preço,
bem como manchetes redigidas de forma irônica e popularesca: “Mala levou bala”.
Mala é gíria para bandido].
Um dos tabloides gratuitos mais antigos de
Brasília, o jornal Lotus, dedica-se integralmente a temas e serviços
ligados a saúde, terapias alternativas e esoterismo. Ou seja, nem tudo que é
gratuito é apelativo, mas quase tudo que é barato é barato também na acepção de
grotesco. Pode-se afirmar, no entanto, que os aspectos grotescos de diários
como Jornal Na hora H! e Aqui DF, tampouco se alinham com os
representantes do gênero em décadas anteriores. Estamos nos referindo
especificamente ao prosaico Notícias Populares, bem caracterizado como imprensa
marrom, e daquela associada ao comentário “se espremer sai sangue”.
O fenômeno na sua projeção teórico-deontológica
A imprensa com traços remanescentes do que foi numa
era caracterizada como yellow press não permanece pura nas
características dos seus primórdios, tendo passado a incorporar – conforme
verificado neste trabalho –, novos valores e novos compromissos, para além dos
valores-notícia estruturantes do processo de noticiabilidade e do paradigma da
“teoria do espelho”, segundo a qual o jornalismo retrata a realidade e a ela se
atém.
A atividade jornalística conserva com zelo, pelo menos hipotético, o
princípio basilar de que a imprensa livre faz parte da própria configuração de
uma sociedade democrática, desempenhando mesmo o papel de um dos poderes
republicanos, o quarto, ao lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
Porém, nesse contexto democrático, a imprensa livre e plural também avocou a si
um nível antes não concebível de envolvimento com os fatos, pela via do serviço
ao público que ela presta, como instituição auxiliar do cidadão e da cidadania.
Mesmo em veículos que não explicitem ter abraçado
como missão o seu compromisso com o cidadão e com a cidadania, a inserção
constante de matérias de serviço e de utilidade pública funciona como uma forma
de legitimação de um novo paradigma, aquele que se edificou como um movimento
(e não propriamente um gênero) por parte de organizações jornalísticas do mundo
inteiro, ou seja, o civic journalism (ou public journalism).
E no
Brasil, embora a ideia do “jornalismo público” não esteja associada a projetos
específicos e financiados, como ocorreu e ainda ocorre nos Estados Unidos,
também existe uma consciência cívica quanto ao vínculo dos veículos de imprensa
com o cidadão e com o público. Emissoras de rádio e TV ligadas direta ou
indiretamente ao Estado fazem questão de se identificarem como praticantes da
“comunicação pública” e do “jornalismo público” como traço distintivo de outras
qualificações: privado e governamental.
Por sua vez, as redes que fazem parte
do sistema privado de radiodifusão demonstram permanentemente em suas chamadas
e vinhetas a convicção de que estão a serviço do público, como o faz a Rede
Globo, com slogans do tipo: “Cidadania você vê aqui” e “Solidariedade você vê
aqui”. Registra-se, assim, um movimento cruzado: os veículos de comunicação
direta ou indiretamente ligados aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
lembrando que são públicos (e não propriamente estatais ou governamentais) e os
veículos privados lembrando que são privados, porém públicos (na sua missão e
na utilidade pública dos seus serviços).
Com relação à amostra que recolhemos e que orienta
o presente texto [Por cerca de 90 dias – entre dezembro de 2012 e fevereiro
de 2013 –, observamos edições dos jornais Aqui DF, Jornal na Hora H!,
Metro, Destake Coletivo, especialmente os dois primeiros,
por serem eles os que mais se aproximam do modelo penny presse que,
hoje, pareceu-nos como prática do que estamos denominando de “jornalismo de
centavos”], a dedução é de que mesmo o que é hoje equivalente à penny
press de outrora adquiriu outros contornos e outras tentativas de aceitação
social e do que poderia ser chamado de “justificativa ética do mundo”.
O que
poderia ainda ser chamado de imprensa marrom já não cabe dentro do
antigo rótulo (que vem da década de 1950), pois embora ainda explore a fórmula
antiga – principalmente o exagero dos aspectos emocionais dos fatos –, já não
faz mais o estilo “se espremer sai sangue” e ainda procura oferecer seções e
colunas de “serviço” e de “utilidade pública”.
Imprensa marrom e imprensa
amarela são, portanto, valores semânticos diacrônicos, mais adequados à
rotulagem de produtos que já não estão nas bancas e que fazem parte do mercado
de outrora, da iconografia de outrora e de um contexto social de outrora.
“Jornalismo popular” parece, no entanto, um eufemismo-substituto para
“jornalismo policial”, expressão em desuso. De qualquer maneira, é inegável
que, mesmo com alterações e inovações (acesso online), o fenômeno da penny
press permaneceu e se fortaleceu. E o fator preço permanece como um traço
marcante de identificação.
A indagação metodológica, no entanto, é a seguinte:
se o “jornalismo de centavos” foi capaz de se ultrapassar e em alguns casos até
de encontrar formas de sustentabilidade que não a venda em bancas (alguns
tabloides são gratuitos) seria também competente para oferecer contrapontos,
por exemplo, com relação aos conteúdos de violência? Poderia a yellow press
de hoje assumir compromissos coerentes com as advocacias e mobilizações
atuantes na sociedade civil e nas campanhas públicas? Entre os serviços e as
iniciativas de utilidade pública que entraram para as suas páginas, haveria
lugar para que o cidadão encontre nesses veículos algum valor-agregado, por
exemplo, voltados para a difusão de uma cultura de paz?
Por enquanto, podemos encontrar não respostas
claras, mas já alguns indícios, como as instruções que são passadas aos
leitores sobre as melhores condutas a serem adotadas pelas pessoas ao serem
surpreendidas pela violência. Um tipo de crime muito difundido nas capitais
brasileiras é hoje o sequestro-relâmpago, cujo êxito (para os bandidos) depende
em grande parte da falta de precaução das vítimas. Ir além da notícia estaria a
requerer dos narradores dos fatos algo mais que o exagero típico do
sensacionalismo jornalístico. Quando os cidadãos se encontram à mercê de
criminosos, a atitude que se espera, de quem quer que seja, é, no mínimo, de
solidariedade e de prescrição de cuidados preventivos. Estaria o “jornalismo de
centavos” envergonhado de continuar simplesmente explorando a violência como
matéria-prima mercadológica?
Há indicadores de que os jornais que claramente se
enquadram na categoria da penny press de hoje começam a incorporar
outros valores para além dos valores-notícia, de duas formas: à primeira
estamos denominando de “valor agregado”. Ao fato jornalístico selecionado com
base nos critérios tradicionais de noticiabilidade, agregam-se informações
adicionais de contexto e de orientação e foco na cidadania, de modo que a
notícia adquira elementos de utilidade pública e, com isso, transforme-se numa
matéria de serviço.
O segundo procedimento seria propriamente uma atitude
deontológica e coerente com a clássica “Teoria da Responsabilidade Social da
Imprensa” [A evolução da teoria da responsabilidade social culminou no
relatório da Comissão para a Liberdade de Imprensa de 1947, apelidada de
Comissão Hutchins, referência ao presidente da mesma. Inicialmente, as
propostas dessa Comissão – e que estão no cerne dos pressupostos do civic
journalism–, não foram bem recebidas pela imprensa em geral (PAULINO, 2009)],
ou seja, aquela que pressupõe por parte dos veículos de comunicação um
compromisso social, no caso da violência, não se limitando aos fatos no que
eles têm de atrativo emocional e mercadológico, mas, sobretudo, no que deles
pode ser tirado como aprendizado e prevenção.
Um paralelo dessa possível responsabilidade social
da imprensa no trato dos fatos jornalísticos relacionados com violência pode
ser traçado, comparativamente aos procedimentos da justiça restaurativa, cujo
foco recai prioritariamente na vítima e não no agressor; nos ganhos pedagógicos
por parte dos atores envolvidos (infrator, vítima, famílias, comunidade,
segurança pública e políticas públicas e sociais) em lugar da simples
realização do desejo de punição ou, na falta deste, no realce da frustração do
cidadão e da sociedade quando prevalece a impunidade e o sentimento de
insegurança.
Conclusões
Há pelo menos três séculos que se estabelece uma
correlação entre democracia e liberdade de imprensa, princípio apregoado por
todos os próceres libertários e presente em todas as constituições. No entanto,
a partir do início do século XX desenvolveu-se a consciência de que a liberdade
de expressão (speech), de imprensa (print) e de publicidade de
ideias (press) exigia uma contrapartida de responsabilidade, surgindo
daí a Teoria da Responsabilidade Social.
[Em contraponto às “teorias
libertárias”. E enquanto o louvor recaía ao “distanciamento” do narrador em
relação aos fatos, com o advento do civic journalismo paradigma mudou
para: “o jornalismo público recomenda uma tarefa diferente: operar bem as
ligações, especialmente a ligação fundamental entre o jornalista e os
cidadãos”. Cf. ROSEN, Jay. “Tornar a vida pública mais pública: sobre a
responsabilidade política dos intelectuais dos media”. Em: TRAQUINA, Nelson e
MESQUITA, Mário. Jornalismo cívico. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p.
55. Outra mudança de paradigma fundamental exige levar-se em conta que o
surgimento do conceito de “democracia participativa” em contraponto à clássica
(porém sujeita ao descolamento entre eleitor e eleitos) “democracia
representativa”.]
A partir do final da década de 1980, surgiu nos Estados
Unidos e se difundiu por vários países um movimento intitulado civic
journalism (também identificado como public journalism), tendo como
principal proposta o engajamento das redações com os desafios das comunidades.
A motivação para votar e as mobilizações em torno do voto consciente estão no
âmago da ideia do “jornalismo público”.
Não existe, contudo, um consenso fechado em torno
da ideia de que a imprensa deva ir além dos fatos, comprometendo-se com as
soluções dos problemas sociais por ela tematizados. Ainda prevalece por parte
dos mais expressivos jornais do mundo – The New York Times, Washington Post,
The Times e Le Monde, entre outros –, a firme convicção de que
reportar os fatos com precisão e densidade já é uma tarefa digna de um dos mais
árduos trabalhos de Hércules. [Em dado momento, o movimento intitulado civic
journalismfoi considerado pela “grande imprensa” norte-americana, como se
fosse uma “cruzada”, o que, por si, gerou uma reação no sentido de que a
imprensa livre e independente deve se manter fora de “cruzadas”.] A noção
seguida por esse bloco é a de que a imprensa deve parar no limite de onde
entram os políticos e governantes, não sendo nem papel nem dever do jornalismo
arvorar-se à gestão pública da vida pública.
Uma outra corrente, no entanto, tem buscado se
afirmar, com uma pregação quase apostólica, em favor de uma imprensa que não
separe o seu trabalho da “vida pública”, um corolário que em muito se assemelha
à concepção de vita activa [O exercício da cidadania não pode ser
passivo, sinônimo de omissão. Para Hannah Arendt, cidadania e vida ativa, ou
seja, participante, são uma coisa só], de Hannah Arendt.
Marco delimitador
de uma polaridade de pensamentos quanto a papel e dever da imprensa foi a
famosa polêmica entre Walter Lippman (1889-1974), que defendia um “governo das
elites” (certamente, com apoio da imprensa) e John Dewey (1859-1952), que
defendia a democracia como um sistema participativo, nele atuando de forma
integrada e como protagonistas as comunidades e os veículos de comunicação. As ideias
de Dewey foram matriciais para o surgimento do civic journalism e seus
numerosos pensadores, entre eles, James Carey, Jay Rosen, Edmund Lambeth e
Davis Merritt, este último um dos mais profícuos autores e militantes do
movimento, para quem jornalismo e democracia são “simbióticos” (TRAQUINA;
MESQUITA, 2003, p. 12)
Tendo em vista os comentários de Merritt, ou o yellow
journalism e sua correspondente yellow press encontram meios de
agregar valor (serviço ao público) ao seu ‘trabalho’, ou permanecerão estáticos,
se servindo da sociedade e da vida pública literalmente pelo seu lado negativo
(numa analogia para com o processo fotográfico), quando o seu melhor desempenho
poderia se dar pelo lado luminoso, literalmente pelas luzes do Esclarecimento.
Alguns indícios de que já ocorre uma reversão de expectativas foi o que pudemos
observar numa verificação empírica de como se dá em pleno século XXI um modo de
produção jornalística que remonta os primórdios do século XIX e que, em matéria
de preço por exemplar, permanece na escala dos centavos ou até faz parte de
outro fenômeno, que é o da mídia gratuita, mas no que se refere à sua função
social tem um potencial imenso por se cumprir, tanto pela sua expressão, num
momento em que o restante da imprensa é recessivo, quanto pela própria expansão
das classes populares no Brasil. [Desde a década de 1990 que os governos
federais que se sucedem no Brasil gostam de ostentar estatísticas segundo as
quais houve sucessivo ingresso das classes D e C na aquisição de moradias e consumo.
Não por acaso, o ingresso dos imigrantes e da classe operária no mundo da
leitura foi um dos motivos do surgimento do fenômeno da penny press.]
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Luiz Martins da Silva é professor associado da
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – atuando na graduação,
pós-graduação, extensão e pesquisa. É jornalista, mestre em Comunicação, doutor
em Sociologia. Realizou um estágio pós-doutoral junto ao Programa de
Pós-graduação em Serviço Social da UnB com o tema “Comunicação, mobilização e
cultura de paz” (2012); Fernando Oliveira Paulinoé professor da Faculdade de
Comunicação da Universidade de Brasília, atuando na graduação, pós-graduação,
extensão e pesquisa. Jornalista, mestre e doutor em Comunicação. Pesquisador do
Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom), Membro da Rede Nacional de
Observatórios da Imprensa (Renoi), Coordenador do Programa Comunicação
Comunitária e Diretor Administrativo da Associação Latino-Americana de Investigadores
da Comunicação (ALAIC)
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